quinta-feira, 20 de março de 2014

Outono

Simplesmente amo o outono. 
Sinto que volto a ser eu mesma, sem aqueles incômodos que o verão me provoca. 
Hoje, no calendário inicia-se a minha estação preferida, o Outono. 
Nas palavras de Rubem Alves, compartilho com você a crônica escrita por ele sobre essa estação climática tão especial e que metaforicamente tem tanto a ensinar. 

O OUTONO


Foi-se, finalmente, o Verão, não sem antes fazer algumas grosserias e malcriações: trovejou, relampejou, choveu, inundou. Não queria ir embora. Compreendo. Queria ficar para ver e namorar o Outono, que é
muito mais bonito que ele. Verão, quarentão: recusava-se a aceitar os sinais da passagem do tempo. Não queria dizer adeus. Gostaria de ficar. A vida é tão boa!
Mas o tempo é implacável. O sol lhe disse que a hora do seu adeus havia chegado. Foi se inclinando no céu, suas viagens cada vez mais curtas, as noites mais longas, o crepúsculo chegando mais cedo, as manhãs chegando mais tarde. O vento, antes, convidava a que se tirasse a camisa. Agora ele causa arrepios e
chama os agasalhos das gavetas onde dormiam. 

O céu fica mais azul. Deve ter sido numa tarde de Outono que os Beatles compuseram aquela balada que canta “... because the sky is blue it makes me cry...” E o verde das plantas fica mais verde. 
No Verão, o excesso de luz ofusca as cores. No Outono, a luz fica mais mansa e as cores desabrocham como flores. O Verão é inquieto. Tudo nele convida a sair e a agir. O Outono é tranqüilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. É um convite ao pensamento. 

Gosto especialmente das suas tardes. O Verão é estação do meio-dia. O Outono vive mais ao sol que se põe. E como são belos os dois, Outono e tardes. Há uma pitada de tristeza misturada no ar. “O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diz a Adélia. Os dois se parecem porque os dois estão cheios de adeus.

A tarde “... é este sossego do céu  com suas nuvens paralelas  e uma última cor penetrando nas árvores  até os pássaros. É esta curva dos pombos, rente aos telhados, este cantar de galos e rolas, muito longe; e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas, ainda sem luz...” 

Na cidade onde eu vivi, no interior de Minas, ao crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a natureza parasse e rezasse.
Eu gostava de ficar olhando para as árvores: havia uma imobilidade absoluta no ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as nuvens ao poente se cobriam de verde claro, passando pelos amarelos, laranjas, e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão.
Tudo belo. Tudo triste. E pensávamos pensamentos diferentes daqueles de durante o dia.

“As nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe, ganham seu colorido triste de olhos que têm atentamente observado a mortalidade dos homens”. (Wordsworth)

O crepúsculo e o Outono nos fazem retornar à nossa verdade. Dizem o que somos. Metáforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que somos seres crepusculares, outonais. Também somos belos e tristes... Como o Verão quarentão, também nós não queremos partir... 

“Quando, ao sol que se põe, os rios ficam cor rosa e um leve tremor percorre os campos de trigo, parece das coisas surgir uma súplica de felicidade, que sobe até o coração perturbado.
Uma súplica de degustar o encanto de se estar no mundo enquanto se é jovem e a noite é bela. 


Pois nós vamos, como se vai esta onda: Ela, para o mar, nós, para a sepultura”. (Paul Bouget). 

Quem quer que pare para ouvir as vozes do Outono e da tarde perceberá que, de dentro da sua beleza, nos falam a nossa vida e a nossa morte. Nada mórbido. Só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina.

Foi assim que o professor de literatura, no filme A Sociedade dos Poetas Mortos, iniciou o aprendizado dos seus alunos. Vocês se lembram? Levou-os até uma fotografia onde se encontravam, imobilizadas sobre o papel, pessoas. Agora, todas estavam mortas. Também nós, um dia. A lição da poesia é que é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para se sentir a beleza incomparável do momento.

Cada momento é único. Não há tempo para brincadeiras. Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe um crepúsculo, “antes que se quebre a corrente de prata, e se despedace a taça de ouro...” Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o Abismo face a face para se cornpreender que o Outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. 

Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte. 

Quando o sol está a pino, essas idéias não nos perturbam. Tudo parece estar bem. Há muito tempo ainda.

 As rotinas do trabalho ocultam a nossa verdade. Mas elas não podem impedir nem que a tarde chegue, com suas cores de adeus, e nem que o Outono chegue, anunciando a proximidade do inverno. E eles nos forçam a ter pensamentos diferentes, pensamentos de solidão. São mestres silenciosos. 

Se prestarmos atenção e ouvirmos o que nos dizem, ficaremos sábios. Porque sabedoria é isto: contemplar o Abismo, sem ser destruídos por ele. Nas palavras de Rilke, “conter a morte, a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”




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